Thursday, April 09, 2009

Independência

O blog vai deixar de ser espaço só de poesias...todas minhas produções serão postadas aqui.
*Conto lido e aprovado pelo Charles Kiefer na cadeira de Escrita Criativa da PUC.
Imaginem a minha felicidade...


Era tanta indiferença naquele corpo esguio de felino que a menina acabou deixando de lado o pedaço de bolo de chocolate que saboreava.
O gato da costureira não estava interessado em deixar que o alisassem muito menos aquela menina estranha que não parava de engatinhar no chão (mesmo não sendo mais um bebê) para ir atrás dele. A costureira olhou em direção à mesa onde ficava a máquina de costura e avistou os dois “amigos” travando o primeiro contato.
-Acho que eles estão se entendendo muito bem!
A avó da menina virou-se para olhar no momento em que a menina colocou a pequena mão em forma de concha sobre a cabeça negra e peluda do gato; este a abaixou de leve, como se o carinho tivesse caído pesadamente sobre ele.
- Minha filha, te levanta do chão!Vai sujar toda a roupa!
A pequena parece não ter ouvido, pois continuou lá acariciando o animalzinho. A avó e a costureira conversavam, acertavam detalhes sobre tecidos, botões, bordados e rendas enquanto a menina maravilhava-se com o bichano. Após alguns minutos, suas carícias tornaram-se mais rápidas e ansiosas já que ele correspondeu-as com um breve ronronar; emocionada, decidiu pegá-lo no colo de barriga para cima. Feito uma minhoca ele conseguiu escapar dos seus fracos e delicados braços. Decepcionada, foi correndo para o sofá onde ele havia subido. Ele a olhava de soslaio e de vez em quando fechava as pálpebras com força, para logo abri-las em seguida e rever a menina com o sorriso estampado de orelha a orelha.
Só havia uma solução: tê-lo para si!O gato era lindo e poderia ser a sua mascote. Chegou perto da avó e receando a reação da costureira, falou baixinho para que ela não escutasse:
-Vó, eu quero aquele gatinho para mim.
-O quê?! Fala alto, guria!É feio cochichar na frente dos outros.
A costureira sorriu. A menina olhou desconfiada para ela, mas por fim reuniu coragem e disse:
-O gatinho... Queria o gatinho para mim...
A avó olhou meio contrariada para o bichano e a costureira disse que ela poderia levá-lo se quisesse, pois já tinha gatos demais. A menina emocionada correu em direção ao sofá e pegou o gato preto de qualquer jeito e o pôs debaixo do braço. Apiedada da neta, a avó resolveu deixar que ela o levasse para casa.
-Mas olha o jeito que tu pegas o coitado do animal!Deixa que eu carrego para ti.
A costureira deu uma caixinha de papelão para o conduzirem até a casa, satisfeita em ter conseguido dar o gato que ninguém queria por ser pretinho e vira-lata, como diziam. Mas aos olhos de uma menina de 5 ou 6 anos, era o bichano mais raro que se poderia ter como bichinho de estimação.
Chegando em casa, mostrou o gatinho a todos e o seguia onde quer que ele fosse. A avó serviu leite em um pires para alimentá-lo, e lá estava a neta ajoelhada ao lado do animal assistindo a cada lambida que ele dava. Se o bichano fosse para debaixo da cama, a pequena pegava uma vassoura para expulsá-lo de lá. Quando chegou a hora da janta, a comida precisou ser servida perto do gato, senão não havia jeito para que a menina jantasse.
A avó já estava pensando em uma maneira daquilo terminar. Por enquanto o animal ainda era novinho, mas e quando fosse adulto? Seria capaz de dar umas boas unhadas no rosto da menina. Até mesmo nos olhos e deixá-la cega!Não dava para facilitar. Então teve uma boa idéia: devolveria o gato para a costureira de manhã bem cedinho, enquanto a sua neta ainda estivesse dormindo.
Na hora de dormir, foi pior ainda. A menina não queria ficar longe do seu bichinho; desejava dormir com ele nos seus pés pelo menos. Como não lhe foi permitido, jurou a si mesma que a primeira coisa que faria ao acordar, seria ir ver desenhos animados e tomar mamadeira ao lado do seu companheiro felino.
A avó levou o gato para dormir na mesma caixa de papelão dada pela costureira. O animal estava exausto e mesmo assim conservava a altivez felina em seus modos; o carinho que recebera da avó era bom, mas não chegou a ronronar. Precisava dormir, depois de um dia todo sendo perseguido e sufocado.
-Tu não és um bicho de pelúcia, não é?Amanhã voltas para casa!
Quando a menina acordou no dia seguinte, correu para a área de serviço onde ela pensava que o gatinho dormia a sua espera, igualmente ansioso para revê-la. Mas não havia nem sinal do bichano.
-Vó! Onde está o meu gatinho?
A avó apenas respondeu:
-Fugiu minha filha. Gatos são assim, independentes...
A pequena não sabia bem que palavra era essa, por isso não entendeu direito o que eram os gatos. Ficou com um nó na garganta, mas não chorou. Sentiu um vazio no peito, a decepção. Ela havia cuidado tão bem dele...

2 Comments:

At 4/10/2009 2:29 PM, Blogger Diogenes M. said...

Gostei muito do texto.

 
At 4/10/2009 2:54 PM, Blogger Unknown said...

belíssimo texto. italo calvino, em um de seus livros, destacou seis virtudes para o novo milenio na literatura, uma delas era a leveza. vejo muita leveja nesse conto.
quanto a garotinha, numa certa, fez lembrar a felicia (quando pegou o gato de qualquer jeito). a feição dela pelo gato, comum em muitas pessoas, só mostra uma coisa: nós humanos temos uma necessidade insaciavel de amar.

abraço, vou acompahar!

 

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